O POVO - Em que período histórico se ambienta a narrativa presente em O mundo de Flora?
Ângela Gutiérrez - O período histórico em que se desenrola o romance abrange pouco mais de um século: dos anos setenta do século XIX , quando o trisavô de Flor, padre Tomé Romeu, conhece Carolina, aos anos oitenta do século XX, quando Flora vive seus 33 anos de idade. Nesse espaço de tempo, é narrada, através de Flor, de um narrador em 3ª pessoa e de outros contadores de estórias, a saga da família Romeu, integrada aos acontecimentos da cidade e do país.
OP - A narrativa do livro é marcada por retalhos. Mas esses retalhos ou pequenas narrativas iluminam-se uns aos outros. Não há uma clara progressão temporal. Como essa trama foi sendo urdida por você?
Ângela - No momento em que comecei a escrever O mundo de Flora, meu primeiro romance, não programei sua estrutura fragmentada. Era uma noite de insônia e, como estava doente, a idéia da morte me reavivou a memória da vida e me levantei para escrever. Na mesma noite, escrevi fragmentos narrativos que constituiriam o começo, parte do meio e o fim do livro. Além de deixar solta a memória, e lembrar, todo mundo sabe, é um caminhar que sai da estrada real e se emaranha em desvios e atalhos, acresci às artimanhas da memória aquelas da imaginação, permitindo-me criar o que Bandeira inscreveu em mármore literário: "a vida que poderia ter sido e que não foi"... Nesse redemoinho acronológico das lembranças vividas, ouvidas, lidas, imaginadas, os fragmentos surgiram. Se, em primeiro momento - o da escrita -, os fragmentos nasceram absolutamente libertos, em um outro momento - o da feitura literária -, foram costurados em um tecido narrativo que, apesar da aparência terremótica inicial, expressão usada por Moreira Campos, submetem-se a lógicas de leitura. Durante a escrita do livro, usei símbolos - estrela, triângulo, quadrado, infinito e outros - para identificar os textos narrados em primeira pessoa pela Flora, os da memória familiar e histórica, em terceira pessoa, os diálogos dramáticos, os causos contados por outras personagens, os cartões, as cartas, os jogos de palavras, as canções, os poemas, enfim, os vários materiais narrativos. Para facilitar meu trabalho de costura, fui mais precisa, dei nomes aos retalhos, e coloquei-os à margem dos fragmentos narrativos e conservei-os na edição do livro porque me pareceram instigantes para o leitor. Sempre desejo acreditar que os leitores concordarão com Sânzio de Azevedo, quando disse sobre meu romance de estréia: "a complexidade da estrutura não prejudica o fluir da narração".
OP - Nuns momentos, podem-se imaginar colagens ou mosaicos. A opção por uma estrutura semelhante à dos diários foi proposital?
Ângela - Muitos estudiosos do romance O mundo de Flora ressaltam sua construção em mosaico, as colagens, o caleidoscópio. Agradam-me essas metáforas para significar a estrutura do livro, pois não só aprecio a relação da literatura com outras artes, como, sou apaixonada por artes plásticas. Ao invés de descrever detalhadamente o longo rio da memória de uma família - o que não é uma opção desprezível, ao contrário, o gênero roman-fleuve produziu excelentes obras -, construí flashes de memória que sugerem ao leitor a possibilidade de reconstrução da trama. A técnica do diário, também fragmentária, e que permite ou exige uma atitude criativa do leitor na reconstituição da trama, foi usada com parcimônia nesse romance. Mais como exemplo da incapacidade de Flora em dar prosseguimento ao trabalho da escritura. Em meu romance mais recente, Luzes de Paris e o fogo de Canudos, fiz uso mais intenso da técnica de diário e de cartas, entremeada com ilustrações, fotografias, cartões e outros materiais narrativos que já aparecem, de forma menos abundante, em O mundo de Flora.
OP - No livro, há um vasto panorama dos costumes na Capital. Nele, descobre-se a Fortaleza que não valoriza a sua memória (ver trecho da demolição da Igreja da Sé). Adiante, lê-se sobre as dificuldades que os negros livres tiveram para se integrar à sociedade "branca". O próprio convívio doméstico na casa de Flora é prenhe de indicações da desigualdade social que sempre marcou o Brasil. Em algum momento, você teve a pretensão de construir um painel da sociedade cearense do início do século passado?
Ângela - Pouco a pouco, ao contar a história de Flor, de outras Floras, da família Romeu, desenha-se, no romance, a história de Fortaleza, não sei se como um amplo painel, mas, talvez, como pequenos cromos que, juntos, compõem um álbum, como aqueles que as demoiselles de antigamente se deleitavam em criar. Muitos críticos têm visto, sim, n' O mundo de Flora, a composição de um painel da Cidade Amada; outros nele enxergam um caleidoscópio que mostra variadas faces de Fortaleza. Com certeza, meu entranhado amor por minha cidade natal transparece nas páginas do romance, seja através da reconstituição de traços de sua memória e da pintura de seus encantos, seja através da perplexidade diante dos maus-tratos que ela e seus habitantes sofrem: desrespeito a seu patrimônio, preconceitos, desigualdade social...
OP - Você poderia apresentar brevemente alguns dos personagens do livro?
Ângela - Os leitores, às vezes, ficam intrigados pelo fato de existirem três Floras na trama do romance. Mas, logo, no desenrolar da ação, percebem que a protagonista é a última das Floras - a que escreve em 1ª pessoa, a que lembra, a que é chamada de Flor, Flô, Florzinha, Flôzinha. Esta Flora revive o passado de sua família e sua própria vida. Com 33 anos, doente, angustia-se com a perda do filho, a proximidade da própria morte e a incapacidade de criar literariamente; tenta unir os laços da vida, através da recordação e da escrita. Sua mãe, Flora Morena, é a guardiã da memória familiar; seu pai é seu guia na biblioteca da vida. Sua bisavó, Dona Florinha, inicia o ciclo das Floras: aquarianas, voluntariosas, generosas e leitoras sensíveis. O ciclo dos Tomés inicia-se com o padre e depois Senador do Império, e tem seu auge com seu filho, bisavô de Flor, que nunca o conhecera, mas o amava como a um deus. As Níveas são a avó e a tia de Flor. Meigas. As Brancas são a tia-avó e a irmã de Flor. A tia Branca era a heroína favorita de Flor e se transforma, em Luzes de Paris e o fogo de Canudos, em protagonista desse romance.
OP - Quanto da própria vida de Angela Gutiérrez há em O mundo de Flora? Precisamente: de onde veio o material para a construção desse livro?
Ângela - À época da publicação da primeira edição do romance, em 1990, muitos jornalistas e leitores me perguntavam se O mundo de Flora era o mundo de Angela. A impressão de semelhança entre os dois mundos não se desvaneceu com o tempo. Desde o ano passado, com a 2ª edição do livro, na Coleção Vestibular da UFC, a pergunta tem retornado, como agora... Digo que o mundo de Flora não é o mundo de Angela, mas que muito do mundo de Angela foi emprestado ao mundo de Flora: memórias de família; alguns traços e vivências da protagonista, em especial, amor pela literatura incentivado pelo pai e pelas estórias contadas pela mãe, insônia, perda do primeiro filho, casas de moradia, livros lidos, entre outros. A esse patrimônio de memória e experiência, porém, foi adicionado o fermento da imaginação e tudo recriado pelo fogo da palavra, que mostra e esconde, sugere e nega o vivido, e, enfim, gera um novo mundo. Relacionando minha vida à de Flora, pode-se perceber que alguns traços de meus trisavós Senador Pompeu e Felismina, de meus bisavós Tomás e Angela Pompeu, de meus avós César e Lais Rossas e Thuríbio e Bela Mota, de minha tia-avó Alba Pompeu, de minha tia Maria Rossas Freire, de meus pais Luciano Cavalcante Mota e Angela Laís Pompeu Rossas Mota estão presentes, respectivamente, nos trisavós, avós, tios, pais de Flora. De nenhum modo, porém, O mundo de Flora se enquadra como biografia ou memórias. É uma obra ficcional. Assim, Tomás Pompeu não é Tomé Romeu, nem Angela Gutiérrez é Flora Fernández. As personagens da vida real de Angela são apenas pontos de partida para a criação das personagens do mundo ficcional de Flora.